Sororidad

person's painted face

Women’s Work (2021)

Ignorance is the only thing that doesn’t have any limits; everything else ends up finding its boundaries sooner or later.

BY DANIEL PELLIZZARI; TRANSLATED FROM BRAZILIAN PORTUGUESE BY LUCAS CUNHA

IMAGE BY JASMINE COWAN


1.

Ignorance is the only thing that doesn’t have any limits; everything else ends up finding its boundaries sooner or later. When I was a kid, I thought snow was a made-up thing, like unicorns. But that was in the 70s, when it was still normal for dogs to have testicles. It didn’t take long for me to learn in school that, no, snow was an actual thing, and it was related to rain. And if snow was real, maybe unicorns were also real, and so was the Hollow Earth and the ley lines and the lost continents of Atlantis and Mu and the werewolves and the mermaids and the boitatás and anything else that could be thought of. I, Tanara Kraus, was 11 when I locked myself up in the bathroom to call the demons and make the deal, 17 when I became friends with Quinho while drinking cachaça mixed with milk in Osvaldo Aranha Avenue, 19 when I left Porto Alegre and found the Argentinian women and the Sororidad Settlement in Barra do Ouro, 20 when everything came to an end, and now, I’m almost 42. But one thing at a time.

 

2.

When Adolfina walked through the door of the convenience store and stepped onto the outside area of the gas station, two packs of cigarettes in hand, the car wasn’t there anymore. It was on Highway 101, between Terra de Areia and Sanga Funda. The summer of 1992 had reached its end like many others in the southern cone of outstretched America: swarms of Argentinians going back on the highways, crossing Rio Grande do Sul to go home after spending the summer in Torres and on the beaches sprinkled along Santa Catarina’s coastline. The housewife from Rosario opened her mouth, carefully looked from side to side, turned her body left to right without blinking but with much effort, almost spinning, but didn’t see what she wanted to find. Around her there was no car, no son, not even a husband, just a Texaco gas station with two pumps, a poorly kept road, a foreign language, and the sun leaving no doubt that it was going to keep shining just like that for a few weeks more, and solitude squeezed Adolfina like a soiled sponge.

 

3.

Human beings are the only beasts that need to mature, every other animal just grows. Only humans suffer from the urge to find, define, and perform an identity. They are alone in the animal kingdom in their instinct of plotting stories and wielding narratives as a tool. In everything else, they are like all other beasts—in some things more than in others, like in every big family. The human skull houses a massive brain in perpetual activity. The ribcage protects a heart that keeps the blood flowing and the body alive to think, feel, lose control, take reins. Humans think about what they feel, ruminate on emotion after the first organic impact, and relive everything once, twice, 123 times over, until the experience becomes something different, less concrete, more real. Some believe there’s an opposition between thinking and feeling, man and woman, human and animal, bone, and guts, this and that. But any opposition is just a situational illusion; from the right angle, there’s little difference between the heart and the head. It’s all one thing, breathing.

 

4.

Norma Lucía had told her husband to wait in the car by the roadside while she went to get gas from the nearest station. There were almost 600 miles to go before they would reach Venado Tuerto in the Argentinian province of Santa Fe. She felt more at ease when she was moving, even when using her legs, and never missed the chance to take a breather from her husband’s silence. One mile going in a straight line on Highway 290, a lively chat in Portunhol with the gas station clerk, and one Pepsi bottle filled with a litre of gasoline—enough to solve the engine’s exhaustion and take the car to the next gas station at the entrance to Minas do Leão. One mile going back on the highway carrying the bottle and then: nothing. She walked another 700 yards to be sure. No car in sight, not even the wrinkles from her husband’s scowl. Norma Lucía sat alone by the empty roadside, an itch in her left ear, a drop of cold sweat on the tip of her nose, her lungs filling with the mushy summer air of Rio Grande do Sul, a taste of blood going from her throat to the edge of her tongue, too old to have been born. She smiled.

 

5.

It started when I realized having fingers was a mistake. Maybe it started earlier. Maybe it was born with me when I was becoming something inside my mother’s womb. I remember I was around five because it happened in our home in Curitiba; there was a screen in the living room, and I was sitting on the Persian rug, sniffing popcorn in the kitchen. I stretched out my hands in front of my face, looked at my fingers and thought, but why? Why that? In my bare feet, the same. It didn’t make sense. The right thing would be four hooves, strong and shiny corneous structures. But there were fingers in my extremities; 10 straws in my hands, 10 useless stumps in my feet. Eventually, looking at it the right way, I even started seeing the hooves. But other people didn’t. They only saw fingers. One day I mentioned this to my mother, who laughed and said: but they are fingers, dear. With little round nails. Look at them, she insisted. You’re gonna let the nails grow and paint them when you turn into a big girl. Fingers, Tanara. Even if from there on I only bleated to express myself, all that people would see was a girl, a little girl playing around, not the wordless despair of a goat born in the wrong body.

 

 *

1.

A única coisa que não tem limites é a ignorância, todo o resto acaba cedo ou tarde encontrando seu contorno. Quando era criança eu achava que a neve era uma coisa inventada, como os unicórnios. Mas isso foi nos anos setenta, quando ainda era comum que cães tivessem testículos. Não demorou para eu aprender na escola que não, a neve existia mesmo e era parente da chuva, e se a neve era uma realidade talvez os unicórnios também fossem, e a terra oca e as linhas de Ley e os continentes perdidos Atlântida e Mu, e os lobisomens e as sereias e os boitatás e qualquer outra coisa que pudesse ser pensada. Eu, Tanara Kraus, tinha onze anos quando me tranquei no banheiro para chamar os demônios e fazer o trato, dezessete ao fazer amizade com a Quinho tomando leite de onça na Osvaldo Aranha, dezenove ao deixar Porto Alegre e encontrar as castelhanas e a Colonia Sororidad em Barra do Ouro, vinte quando tudo acabou e agora estou chegando aos quarenta e dois. Mas uma coisa de cada vez.

 

2.

Quando Adolfina cruzou a porta da loja de conveniência e pisou na área externa do posto de gasolina, dois maços de cigarro na mão, o automóvel não estava mais lá. Estava na BR-101, entre Terra de Areia e Sanga Funda. O verão de 1992 chegava ao fim como tantos outros no cone sul da comprida América: enxames de castelhanos voltando pelas rodovias, atravessando o Rio Grande do Sul a caminho de casa após o veraneio em Torres e praias salpicadas pelo litoral de Santa Catarina. A dona-de-casa rosariense abriu a boca, olhou bem para os lados, girou sem piscar o corpo da esquerda para a direita com muita dificuldade, quase rodopiando, mas não viu nada do que desejava encontrar. Ao seu redor não havia mais automóvel nem filho e muito menos marido, apenas um posto Texaco com duas bombas e uma estrada mal conservada e uma língua estrangeira, e o sol não deixava dúvidas de que pretendia brilhar daquele jeito por mais algumas semanas, e a solidão espremeu Adolfina como a uma esponja suja.

 

3.

O ser humano é o único bicho que precisa amadurecer, os outros animais apenas crescem. Somente humanos sofrem da compulsão de encontrar, definir e encenar identidades, e também se encontram solitários no reino animal em seu instinto de tecer histórias e usar narrativas como ferramenta. Em todo o resto são como os outros bichos: em algumas coisas mais, em outras menos, como em qualquer família grande. O crânio humano abriga um cérebro volumoso em atividade perpétua, a jaula das costelas protege um coração que mantém o sangue em movimento e o corpo vivo para raciocinar, sentir, perder o controle, tomar as rédeas. Humanos pensam sobre o que sentem, ruminam a emoção para além do primeiro impacto orgânico, revivem tudo uma, duas, cento e vinte e três vezes até que se torne algo diferente, menos concreto, mais real. Há quem defenda existir oposição entre cognição e emoções, entre homem e mulher, entre humano e animal, entre ossos e vísceras, entre isto e aquilo. Mas qualquer oposto não passa de uma ilusão situacional, do ângulo certo em pouco diferem o crânio e o coração. É tudo uma coisa só, que respira.

 

4.

Norma Lucía pediu que o marido esperasse com o carro no acostamento enquanto ela ia buscar gasolina no posto mais próximo. Ainda faltavam quase mil quilômetros para chegarem em Venado Tuerto, na província argentina de Santa Fe. Ela se sentia mais à vontade em movimento, mesmo usando as próprias pernas, e não perdia oportunidades de descansar do silêncio do marido. Dois quilômetros de ida em linha reta pela BR-290, charla animada em portunhol com o atendente e uma garrafa de Pepsi com um litro de gasolina, suficiente para resolver a pane seca e avançar com o carro até o posto seguinte, na entrada de Minas do Leão. Dois quilômetros de volta pela rodovia carregando a garrafa e então: nada. Caminhou mais setecentos metros para ter certeza. Nada do carro, e da carranca do marido nem as rugas. Norma Lucía sentou no acostamento vazio, coceira na orelha esquerda, uma gota de suor gelado na ponta do nariz, enchendo os pulmões com o ar pastoso do verão gaúcho e sentindo da garganta à ponta da língua um gosto de sangue, velha demais para ter nascido. Sorriu.

 

5.

Começou quando entendi que eu tinha dedos por engano. Talvez tenha começado antes, pode ter nascido comigo, quando fui me tornando alguma coisa dentro do útero da minha mãe. Lembro de estar com uns cinco anos, porque era na casa de Curitiba, tinha o biombo na sala e eu estava sentada no tapete persa, farejando pipoca na cozinha. Estendi as mãos diante do rosto, olhei para os meus dedos e pensei: mas por quê? Por que isso? Nos pés descalços, a mesma coisa. Não fazia sentido. O correto seriam quatro cascos, estruturas córneas fortes, reluzentes. Mas nas minhas extremidades havia dedos: nas mãos uma dezena de palitos, nos pés dez tocos sem função. Com o tempo, olhando do jeito certo, até comecei a ver os cascos. Mas os outros não. Só viam dedos. Um dia comentei o assunto com a minha mãe, que riu e disse: mas são dedos, minha filha. Com unhas redondinhas, olha bem, ela insistiu. Que você vai deixar crescer e pintar com esmalte quando for mocinha. Dedos, Tanara. Mesmo que dali em diante eu apenas me comunicasse através de balidos, tudo que todos enxergariam seria uma menina, uma garotinha fazendo graça, e não o desespero sem linguagem de uma cabrita parida no corpo errado.


Daniel Pellizzari is a Brazilian writer, editor, and translator. He was born in Manaus in 1974 and has published two novels, Dedo negro com unha (DBA, 2005) and Digam a Satã que o recado foi entendido (Companhia das Letras, 2013), as well as two collections of short stories. He has translated works by authors such as Kurt Vonnegut, Ian McEwan, and Donald Barthelme. Sororidad is an excerpt of his forthcoming novel.

 

Lucas Cunha is a Brazilian journalist and translator. He was born in Porto Alegre in 1991 and moved to Toronto in 2022 to pursue a degree in the Professional Writing and Communications program at Humber College.

Image: Women’s Work (Jasmine Cowan, 2022)

Edited for publication by Nathan Whitlock, as part of the Creative Book Publishing program.

HLR Spotlight is a collaboration between the Faculty of Media & Creative Arts and the Faculty of Liberal Arts & Sciences and Innovative Learning at Humber College in Toronto, Ontario. This project is funded by Humber’s Office of Research & Innovation.

Posted on August 23, 2022 .